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Uma Nova Autonomia em uma Sociedade mais Democrática

Entrevista para IDE, 1° semestre de 2000, n.32, 
da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

 

Se a Economia é o elemento determinante neste final de século, influindo em nosso modo de ser e de apreender os fatos, qual é a visão de um economista?
E, mais ainda, de um economista que está participando do governo nos últimos anos, que combina uma visão macroscópica da Economia, associando a uma praxis efetiva e importante, uma vasta obra de reflexão a respeito do tema?
Ide convida o professor Luíz Carlos Bresser-Pereira, que nos oferece, através de uma análise culta e abrangente, uma abordagem macroscópica, humanista e esperançosa sobre o homem contemporâneo.
Entrevista com o professor Luíz Carlos Bresser-Pereira realizada em dezembro de 1998, quando ocupava a pasta de Ministro da Administração do governo Fernando Henrique Cardoso. Atualmente é Ministro da Ciência e Tecnologia.
O ano de 1998 terminou sinalizando uma crise econômica mundial há muito prevista pelos economistas e esperada como a falência do capitalismo.
O futuro chegou e é responsabilidade do homem contemporâneo pensar, criticar e construir o seu presente formando alicerces para as mudanças que apontam no horizonte. Há muitas questões que se referem a essa nova ordem mundial e a esse novo homem que está surgindo, que interessam à Psicanálise.
Bresser-Pereira, professor, político e empresário, é a pessoa que Ide entrevista à busca de elementos para pensar esse momento. Professor, tem uma visão histórica e genética dos acontecimentos políticos que se referem tanto a questões de nosso país quanto às do mundo globalizado. Ministro, apresenta-nos a visão de um pensador que nos fala de um lugar privilegiado: de dentro das modificações, melhor dizendo, do epicentro do furacão.

IDE: Todos esses acontecimentos da área econômica que estão abalando o mundo globalizado nesses últimos meses indicam que estamos vivendo o previsto fim de uma era. Como o senhor vê essa transição? Como pensá-la a partir de dentro dela?

Bresser-Pereira: No século passado, a transição de um regime aristocrático semi feudal para um regime burguês liberal estava acontecendo através de um processo de associação e cooptação de classes. No século XX, especialmente na 2a metade do século XX, nós assistimos ao crescimento fortíssimo das classes médias assalariadas, ou da nova classe média profissional, principalmente o setor privado e secundariamente o setor público.
A meu ver, as classes médias assalariadas, ou as classes médias novas, cresceram de tal maneira, se tornaram de tal maneira dominantes, que abarcaram todas as outras. A burguesia continua a existir e os trabalhadores também, mas a grande classe que está em toda parte é essa classe média assalariada que se organiza internamente não em termos de classe, mas em termos de camadas: há uma baixa classe média, uma média classe média, uma alta classe média, com prestígio e remunerações bastante diferentes. Nos últimos anos, com a globalização, apesar de dominante, a classe média se sentiu extremamente ameaçada. Por que ela se sentiu ameaçada? Porque, ao invés de continuar sendo uma classe média assalariada, com emprego relativamente estável, ela passou a ter que ser também uma classe média profissional liberal autônoma, pois as empresas começaram a terceirizar muitas atividades e a diminuir o número de empregados e administradores diretamente a ela subordinados. Preferem contratar pessoas que trabalhem por conta própria; com isso, o emprego tornou-se muito mais instável. A classe média deixa de ser apenas assalariada, mas continua sendo uma classe média moderna, que baseia o seu poder e o seu prestígio, no aprendizado que teve na Universidade, no conhecimento técnico e organizacional. Não se confunde com a classe média tradicional, pequeno burguesa.
Para os psicanalistas, isso é um pouco óbvio, porque os psicanalistas são praticamente todos profissionais liberais, que trabalham autonomamente. Mas isso é uma exceção; o grosso da classe média moderna era constituída de empregado e agora isto está mudando.
Tudo isso naturalmente está relacionado com um progresso técnico muito grande e acelerado, que aconteceu no mundo nesses últimos 25 anos, especialmente na área da informática, da microeletrônica. Esse enorme desenvolvimento levou um número crescente de pessoas à idéia de que irá haver um desemprego permanente – às vezes usam a palavra estrutural; mas estrutural quer dizer permanente. Nesse caso voltou-se às idéias do fim do século XVIII, que são recorrentes, de que o progresso técnico produzirá o desemprego permanente. Eu acho isso uma grande tolice.

IDE: A idéia de um colapso global da economia como decorrente do desenvolvimento tecnológico é uma idéia tão pessimista quanto imaginar que o mundo vai acabar no ano 2.000?

Bresser-Pereira: É quase como acreditar que o mundo vai acabar. Existe uma lei básica da macroeconomia que foi formulada por um economista francês no início do século passado, Jean Baptiste Say, que diz simplesmente o seguinte: a oferta cria a sua própria procura, ou seja, tudo o que você produz se transforma em renda (em salário ou em lucro e juros), e o salário, o lucro e os juros se transformam depois em consumo ou investimento. Essa lei também diz o seguinte: então, não há crise nunca, nunca há crise de realização, você tem sempre uma economia lindamente funcionando. O que não é verdade; existem crises. Keynes criticou essa lei, mostrando que no curto prazo, às vezes, as pessoas podem ser levadas a entesourar o dinheiro e assim a renda não se transforma em consumo ou investimento, e você tem uma crise. É uma das causas da crise. Mas a longo prazo, a lei continua válida. Então, a longo prazo, não pode haver desemprego permanente enquanto essa lei for válida, e eu não vejo por que ela tenha deixado de ser válida.
Por outro lado, o que se observa desde o século XVIII, quando houve a Revolução Industrial e começou o processo da ação do progresso técnico, é que a jornada de trabalho vem diminuindo. Naquela época o horário de trabalho chegava facilmente a 14, 16 horas, durante 6 dias por semana. Hoje é de 8 horas por dia, durante 5 dias, já está baixando para 35 horas na França. Discute-se em outros países europeus essa queda. Há um número crescente de pessoas aceitando trabalho em tempo parcial. Por que todo esse processo está acontecendo? Por dois motivos. Um motivo básico é que o aumento da produtividade, e o crescimento econômico que deriva do aumento da produtividade, elevou os níveis de vida muito fortemente em todo o mundo que passou pela revolução industrial e capitalista. Então, as pessoas podem começar a trocar dinheiro por lazer. Na hora em que os franceses deixarem de trabalhar 40 horas e passarem a trabalhar 35 horas, eles vão ganhar um pouco menos. É impossível não ganharem menos, ninguém inventa dinheiro; quer dizer, eles vão produzir menos e vão ganhar um pouco menos.
Nós vivemos na sociedade pós-materialista. Por que pós-materialista? Exatamente porque um número crescente de pessoas está fazendo esta troca. Já conseguiu um padrão de vida razoavelmente bom e quer trabalhar um pouco menos e gozar mais a vida. Quando o desemprego é voluntário, quando você não está empregado porque não quer, ou está empregado meio período porque não quer trabalhar período integral, isso não é desemprego. Desemprego é só aquele que é involuntário.
Outro resultado do progresso técnico é a instabilidade do emprego, porque se percebeu que é mais eficiente trabalhar com pessoas que trabalhem autonomamente, que são contratados de forma mais competitiva.
Em certo momento você tem um enorme desenvolvimento em determinado setor e uma porção de administradores, por exemplo, tornam-se desnecessários. Até que essa pessoas sejam retreinadas demora, e isso causa, então, durante certos períodos, um desemprego maior.

IDE: Então, o senhor não acredita no desemprego estrutural nos próximos anos?

Bresser-Pereira: Não. Eu sou essencialmente uma pessoa otimista e o meu otimismo é concreto nessa matéria. Eu sempre digo que há um certo tipo de intelectual, tanto na esquerda quanto na direita, não é uma coisa só da esquerda, que acha que para ser intelectual precisa ser crítico – sobre o que não há dúvida – e precisa ser catastrofista, o que é falso. Eu proponho o seguinte teste: tome qualquer país, exceto os países africanos, que estão ainda numa fase pré-capitalista, pegue alguns indicadores de nível de vida e depois meça de 50 em 50 anos esse indicador. Você vai ver que progresso houve.
O que acontece, por outro lado, é que esse mundo que melhora de padrão de vida, na medida em que deixa de ser uma sociedade muito burocratizada, e mais mecanizada, passa a terceirizar os trabalhos e a exigir do indivíduo uma autonomia muito maior. É uma autonomia onde o novo individualismo é institucionalizado, muito diferente do individualismo do século XVIII descrito pelo Adam Smith, que era um individualismo egoísta. Claro que sempre há egoísmo nas pessoas, mas é um individualismo institucionalizado porque a própria organização econômica da sociedade estimula que as pessoas sejam indivíduos, quer dizer, que tenham a sua própria carteira de identidade, seu cartão de previdência social, sua carteira de trabalho, seu endereço, seu fax, seu e-mail, etc, e trabalhem por conta própria cada vez mais. Ora, é evidente que esse indivíduo tem dois desafios: um, ele tem que saber viver menos protegido, e isso é complicado. Eu imagino que os psicanalistas tenham aí um espaço bom para trabalho, porque eles lidam com essa questão: como operar numa situação onde não há proteção. Se o indivíduo não está protegido com um emprego, nem pelo todo poderoso Estado, nem pela grande organização burocrática privada, ele está por sua própria conta, então está se auto-administrando, o que é uma coisa um pouco mais complicada.

IDE: Atualmente os grandes líderes políticos apresentam um perfil bastante polivalente e também bastante semelhante entre si: os grandes pólos antagônicos se diluíram. Como o senhor entende essa característica moderna?

Bresser-Pereira: Nós tivemos uma crise nos últimos 25 anos, que eu tenho sempre definido como uma crise do Estado, mas na verdade é uma crise mais ampla, é a crise das organizações burocráticas. Quer dizer, o progresso tecnológico muito rápido, de um lado, e o excessivo e distorcido crescimento das burocracias do outro, provocaram crise das organizações burocráticas e a necessidade de reformá-las. Em conseqüência, os Estados se reformaram, as empresas se reestruturaram. Aquelas que não faliram tiveram que reduzir seu tamanho, terceirizar. E esse processo aconteceu com um aumento do papel do mercado. Há dois princípios de coordenação de qualquer sistema econômico: ou o Estado e a administração, ou o mercado e a concorrência. São os dois princípios. Então o princípio mercado-concorrência aumentou em detrimento do princípio estado-administração. Isso tudo aconteceu também com um avanço muito grande das idéias de direita neo-liberais, que começou a acontecer nos anos 70 e tornou-se dominante nos anos 80. E então  o centro político se deslocou mais para a direita. O que a esquerda teve que fazer? A esquerda também teve que se adaptar a essa verdade. O primeiro líder político que fez isso foi Felipe Gonzales, na Espanha, seguido do Mitterrand que quando subiu ao poder na França, fez uma tentativa de fazer uma política de esquerda num momento em que não dava para fazer, e teve que se ajustar. E  hoje há o processo do Blair, que é o mais conhecido, mas é evidente que na Alemanha e na França também isso está acontecendo.
Hás pessoas que dizem que esses líderes e seus partidos não são mais de esquerda. É claro que são de esquerda! Quer dizer, o centro mudou-se mais para a direita, o mercado ganhou espaço em relação ao Estado, a competição em relação à organização ou planejamento, mas os dois continuam existindo. Eu sempre digo que a disputa entre esquerda e direita é uma disputa entre aqueles que privilegiam a ordem em qualquer circunstância, que é a direita, e aqueles que estão dispostos a arriscar a ordem em nome da justiça, que são os de esquerda. A ordem é sempre fundamental. Sem ordem, você não consegue nada. Mas se você diz: bom, eu vou deixar que haja um pouco de desordem, vou deixar que haja greve, por exemplo, que os trabalhadores protestem e coisas assim, porque isso é importante para que haja mais justiça, mais igualdade – isso é esquerda. Esse conflito vai haver sempre, graças a Deus! Às vezes é preciso priorizar a justiça, às vezes é preciso restabelecer a ordem. Essa nova esquerda que surge no mundo, que surge com Blair, que surge com D’Estaing, que surge aqui, com Fernando Henrique Cardoso, é uma esquerda  que continua disposta a arriscar a ordem em nome da justiça, mas com formas diferentes: reconhecendo esse indivíduo novo que está aí, sobre o qual falamos, reconhecendo que o mercado tem um papel maior do que se pensava, reconhecendo que os indivíduos precisam ter mais autonomia e mais responsabilidade.

IDE: Então, os conceitos de esquerda e direita se modificaram bastante, não é?

Bresser-Pereira: Eu fiz uma palestra recentemente em que eu disse que as três ideologias relevantes no momento são a velha centro-esquerda, a nova centro-esquerda e a nova centro-direita. Quer dizer, a velha centro-esquerda é burocrática, estatizante e corporativista.  Ela deu certo até um certo ponto, mas depois entrou em crise com o Estado. Ela produziu na Europa a social-democracia, que é uma maravilhosa engenharia social e política, mas  entrou em crise por vários motivos. Houve então o avanço da nova direita neo-liberal, que ao invés de dizer que tudo devia ser controlado pelo Estado, passou a dizer que  tudo deve ser controlado pelo mercado. O mercado resolveria todos os problemas. Ora, isso é uma tolice, isso não é verdade. Primeiro, o Estado tem que garantir o funcionamento do mercado e segundo, o Estado tem que corrigir as falhas de mercado. Mas, a nova centro-esquerda, ou o que eu chamo também da nova social democracia, ou o novo social-liberalismo, reconhece isso. Primeiro reconhece que a coordenação da economia deve ser feita principalmente pelo mercado. A coordenação da sociedade deve ser feita principalmente pelo Estado. A coordenação da economia dentro da sociedade mais ampla deve ser feita principalmente pelo mercado, mas o Estado também tem de supervisionar e corrigir os defeitos dessa coordenação econômica feita pelo mercado que é, por definição, falha, que por definição privilegia os mais poderosos e que, portanto, tem embutido nela certos elementos desequilibradores que não podem ser deixados por conta própria.

IDE: Que áreas o Estado deveria privilegiar em termos de investimento?

Bresser-Pereira: A meu ver , a coisa mais importante é investir em educação. Principalmente em um país tão pobre como o nosso, investir em educação, em saúde, investir no capital humano. Agora, aquelas pessoas que já conseguiram aquele básico de educação e de saúde, precisam investir em si mesmos. Eu acho fundamental conhecer-se a si mesmo, procurar olhar-se um pouco de fora.

IDE: Um tema que sempre nos interessa é o descompasso que existe entre a economia transnacional e a estrutura política fundada em estados nacionais. Como o senhor acha que esse descompasso criado pela globalização vai ser resolvido nas próximas décadas?

Bresser-Pereira: A formação dos chamados Estados Nacionais, nos séculos XVII, XVIII, XIX, se deu por imposição  de um poder central – Paris, por exemplo, ou Londres, ou Madrid – sobre as outras nações em volta, transformando tudo numa nação só,  o “Estado Nacional”. O que estamos vendo agora é um processo inverso, estamos vendo a formação de um grande Estado europeu, mas essa formação do Estado Europeu se faz voluntariamente. Não há nenhum centro – certamente Bruxelas não é o centro que impõe aos demais que se integrem na União Européia. Por outro lado, é voz corrente que a globalização reduziu a autonomia dos Estados em fazer as suas próprias políticas. Eu acho que isso é meia verdade. Tem um pouco de verdade, mas é meia verdade, porque o que reduziu mesmo a capacidade dos Estados de fazer políticas é a sua debilidade fiscal, é a crise fiscal em que os Estados foram colocados. Quando você tem um Estado que tem uma capacidade fiscal e tem também capacidade administrativa, - que é um outro elemento, além da capacidade fiscal, para que haja governança, - ele continua tendo autonomia para defender os seus cidadãos contra os desequilíbrios do mercado global. Como há os desequilíbrios, distorções e falhas no mercado nacional, as há obviamente no mercado global, que é papel do Estado e das entidades multilaterais contrabalançar.
Esses fluxos, esse capitais voláteis que existem no mundo e que facilitaram a crise destes últimos anos na Ásia, depois, na Rússia, ameaçaram o Brasil por duas vezes. Não há dúvida que o capital volátil é perigoso. É perigoso para quem toma emprestado, para quem se enfraquece. Se nós no Brasil, em vez  de termos um déficit em conta corrente crescente de mais de   4% do PIB, não tivéssemos déficit em conta corrente, nós estaríamos muito menos vulneráveis por mais voláteis que fossem os capitais. Nós dependeríamos dos capitais voláteis apenas para rolar a dívida velha. E se não tivéssemos dívida velha, como acontece com muitos países, (já que, por definição, se alguns são devedores, outros são credores) aquela dependência seria nula. O Japão, por exemplo, não está nada ameaçado pelos capitais voláteis. A crise do Japão hoje – ele é credor – é um outro tipo de crise. É uma crise bancária e uma crise Keynesiana de insuficiência de demanda.
Como cada indivíduo tem que tratar de si mesmo, cada nação tem que cuidar de si própria. Em vez de ficar jogando a culpa na globalização, ou se desesperando pela globalização, tem que tratar de cuidar de si própria e de se fortalecer, fortalecer o seu Estado, fortalecer o seu país, fundamentalmente não se endividando. E isso é perfeitamente possível. Para isto é necessário considerar uma outra coisa, a ideologia da globalização, que pode ser chamada de “globalismo”. Essa ideologia diz o seguinte (tornou-se muito popular no Brasil nesses últimos anos): “o desenvolvimento se faz graças ao apoio das empresas internacionais, ou dos países desenvolvidos, que vão transferir sua poupança para nós”. Isso é uma tolice. O meu tio, o Barbosa Lima Sobrinho, ex-governador de Pernambuco, e membro da Academia Brasileira de Letras, é presidente, até hoje, com 102 anos, da ABI – Associação Brasileira de Imprensa. É um velho nacionalista, bravo nacionalista. Ele foi candidato a vice-presidente da República quando o Ulisses Guimarães foi anti-candidato. O tio Barbosa escreveu um livro chamado “Japão - o capital se faz em casa.”. Não há dúvida nenhuma – o capital se faz em casa. A poupança estrangeira, em toda a história do desenvolvimento capitalista, sempre foi absolutamente secundária. A poupança externa é bem-vinda, não tenho nada contra ela, desde que se entenda que ela é secundária. Portanto, o negócio é cuidarmos direito da nossa própria casa, em vez de ficar contando com a benesse dos outros, o que não existe.

IDE:
Na sua opinião, quais as conseqüências da globalização do mercado na economia mundial?


Bresser-Pereira:  Na medida em que o mundo se globaliza e se torna menor, é claro que a interdependência é maior e organismos internacionais poderão ajudar na coordenação desse mercado global. Ao mesmo tempo em que cada um se fortalece por conta própria, é bom que haja mecanismos globais. O G7 é isto, o FMI é isto. E é necessário que eles existam e se fortaleçam. Mas o que eu estou sugerindo é que, ao mesmo tempo em que isso se faça, cada um que trate de cuidar de si próprio. Nessas duas perspectivas também é muito importante entender que a estabilidade e o crescimento no mundo é uma coisa que interessa aos países desenvolvidos, ainda que, contraditoriamente, os países desenvolvidos nos cobrem taxas de juros escandalosas e com isso nos explorem. Logo, eu não vou repetir agora velhas teorias de imperialismo. Eles têm grande interesse que o Brasil não quebre, que o Brasil se desenvolva, compre bastante mercadorias deles, pague as suas dívidas. Entre as nações há interesses mútuos muito grandes e há conflitos de interesses substanciais. Eu acho que os interesses mútuos são, graças a Deus, substancialmente maiores do que os conflitos de interesse. Mas estes existem e portanto nós temos que cuidar da nossa própria casa e jamais contar com a ajuda de ninguém, porque o que recebemos de ajuda é absolutamente marginal, e o que eles levam de outras formas é bem mais significativo, como juros altos, por exemplo.

IDE: Ouve-se dizer que o Estado não mais existirá num futuro próximo porque o poder está em algumas grandes empresas multinacionais. O senhor concorda com isso?

Bresser-Pereira: Isso não é verdade. Isto é ideologia. A ideologia do globalismo diz o seguinte: já não existem mais interesses nacionais; as empresas são multinacionais, não têm nação, e os seus administradores também não têm nação. Ora, é só ver o que faz o embaixador americano no Brasil, o embaixador alemão no Brasil, o embaixador francês no Brasil. Eles defendem os interesses das suas empresas no Brasil, o que é correto que façam. Não tenho nada contra isso! São pessoas excelentes aliás, e estão fazendo o seu trabalho. Mas eles sabem muito bem que a General Motors é americana, que a Rhodia é francesa, que a Glaxo é inglesa, e ponto final. Defendem os seus interesses aqui.

IDE: O senhor  falou há pouco que, atualmente, cada vez mais se fala no individualismo das pessoas, em se proteger a individualidade das pessoas. Mas, paralelo a isso, cada vez mais se invade a vida privada das pessoas. Por exemplo, o cartão de crédito que pode fornecer todos os dados pessoais em poucos minutos. O que está acontecendo, qual será o rumo disso?

Bresser-Pereira: Eu realmente não sinto esse perigo, porque acho que o importante é o desenvolvimento do estado de direito. Ora, a afirmação dos direitos humanos está aumentando. Eu acho que isso está acontecendo claramente. Por isso não compartilho da preocupação de que com um número único virá o Big Brother... Olha, 1984 já passou. Onde está o Big Brother? O livro do Orwell  fez  essas predições sobre o mundo totalitário que teríamos em 1984, nos anos 40, eu creio. Falhou redondamente! O livro dele continua sendo muito interessante, ele foi um grande escritor, mas o seu pessimismo autoritário não se confirmou. Pelo contrário!. Se você quiser me perguntar o que caracterizou fundamentalmente o século XX, eu diria que o mais importante de todas as características foi o aumento da democracia. Foi o século da democracia. Não aceito que a democracia surgiu na Grecia. Isso é bobagem, era uma democracia de escravos e mulheres não cidadãs. Mesmo no século passado, também não havia democracia. As mulheres continuavam a não votar, os pobres não votavam. A partir  da primeira metade deste século os países desenvolvidos se tornam democráticos. Na segunda metade deste século os países subdesenvolvidos da América Latina e de alguns outros países se tornam democráticos. Isso foi um grande avanço, embora ainda haja violências terríveis contra os direitos humanos – especialmente dos pobres. Os pobres são profundamente violentados nos direitos civis, em direitos políticos, além de não gozarem dos direitos sociais.

IDE: Mas não há dúvida que há uma denúncia das injustiças sociais cada vez maior, não é?

Bresser-Pereira: Sim, há uma denúncia e um progresso cada vez maior em relação aos direitos do cidadão. Eu não prevejo a volta ao totalitarismo. A democracia se afirmou na sociedade capitalista moderna. É a forma mais adequada de se garantir a estabilidade, de garantir a ordem. Na verdade são quatro os objetivos políticos fundamentais que os homens perseguem contemporaneamente: ordem, liberdade, igualdade e o bem estar ou desenvolvimento econômico. E a democracia é, com todos os seus percalços, o regime que melhor permite aos homens atingir esses quatro objetivos hoje. Não era há 200 anos atrás e certamente não era há 1000 anos atrás.

IDE: Sabe-se que o senhor tem refletido sobre ética em relação aos problemas neste final de século. Como o senhor vê o episódio Pinochet? Há uma globalização da ética também?

Bresser-Pereira: Esse episódio do Pinochet é um sinal claro do avanço democrático pelo qual a humanidade está passando. De repente começa a idéia de uma corte criminal internacional, que está se expandindo. De repente, um ditador que cometeu violências contra os direitos humanos, as mais terríveis, está ameaçado de sofrer um processo fora do seu país, porque teve o descuido de viajar. Isso era impensável há 50 anos atrás e hoje é perfeitamente viável.

IDE: Como é ser ministro? Como é estar participando do governo? Como é ter essa visão global dos problemas de um país?

Bresser-Pereira: Tudo que eu aprendi e sei na vida, me ajudou muito nesse trabalho que eu realizei no Ministério da Administração. Eu fiz uma reforma que eu acho muito importante, a proposta de transformar a administração pública brasileira de uma administração pública burocrática para uma administração pública gerencial. Embora seja um setor da administração pública, isto é, do governo apenas, é um setor que nesses últimos quatro anos ganhou uma relevância bastante grande; passou a constar da agenda do país, o que não era verdade antes.
Por outro lado, eu vejo o governo como um todo, e vejo um presidente que pensa exatamente como eu, mas que tem imensas dificuldades de transformar as suas idéias em realidade. Dificuldades de ordem política, dificuldades de ordem econômica e dificuldades de ordem administrativa. Todos só pensam nas dificuldades de ordem política. As restrições mais fortes que o presidente sofre são restrições no plano econômico: é o fato de o país estar muito endividado externamente e com um déficit em conta corrente muito alto, é o fato de o país estar com um desequilíbrio orçamentário do próprio governo muito grande. Isso não se resolve apenas com vontade, com uso do poder. Por outro lado, há deficiências enormes dentro do Estado: há uma administração pública burocrática, velha, muitos funcionários ainda incompetentes, embora tenha outros ótimos. Tudo isso dificulta muito o governar. E há a globalização, que nós já discutimos.
Eu sempre digo que a globalização para nós, da esquerda, é um desafio. Não é uma ameaça, como quer a velha esquerda, não é uma oportunidade – agora vamos receber as benesses do mundo - como quer a nova direita. É um desafio que nos obriga a nos fortalecer e a enfrentar essas dificuldades com determinação e imaginação. Só determinação não basta. Imaginação, coragem ...
Eu andei muito preocupado em saber quais são as qualidades morais ou éticas de um governante e a conclusão a que eu cheguei é que você tem duas qualidades fundamentais, e elas são contraditórias até certo ponto: você precisa ser corajoso e prudente. Eu não vou dizer que é preciso ser honesto, isso é óbvio, que é preciso ser competente, todas essas coisas são mais ou menos óbvias. Mas o interessante é que é preciso ser prudente, não se pode arriscar o tempo todo; as vidas de milhões de pessoas são influenciadas pelas decisões que você toma. Mas, ao mesmo tempo, é preciso ser corajoso, porque há momentos em que você tem que respirar fundo e decidir - e arriscar o seu cargo nessa hora. O estadista é aquele que em certos momentos arrisca o seu cargo para fazer a coisa certa.

IDE: Para finalizar, quais os cinco filmes, cinco livros e cinco músicas que o senhor considera marcante na sua formação e que recomenda?

Bresser-Pereira:
5 livros: Irmãos Karamosov, de Dostoievsky; Em Busca do Tempo Perdido, de Proust; Dom Casmurro, de Machado de Assis; Grandes Sertões Veredas, de Guimarães Rosa e A Peste, de Camus.
5 músicas: Nona Sinfonia de Beethoven; Sonata para violoncelo e piano de Brahms; Concerto para piano nº 27 de Mozart; La Traviata de Verdi; Quatro Estações de Vivaldi e Vésperas da Beata Virgem Maria, de Monteverdi.
5 filmes: “O Leopardo”, de Visconti; “Oito e meio”, de Fellini; “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha, “A grande ilusão”, de Jean Renoir e “Um lugar ao sol” de William Wyler.    

 

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