'O FMI foi
            frouxo, populista, e nós aceitamos' 
            Entrevista a Edmundo
            M. Oliveira e Sonia Racy  
            O Estado de
            S.Paulo, 25.08.2002 
            Bresser
            Pereira critica o Fundo por ter promovido políticas insustentáveis de endividamento  
            O economista Luiz Carlos
            Bresser Pereira, professor da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, foi ministro da
            Administração da primeira gestão de Fernando Henrique Cardoso e hoje é um crítico da
            política econômica adotada no governo de que tomou parte. No início deste ano, junto
            com seu colega de FGV Yoshiaki Nakano, secretário da Fazenda do governo paulista de Mario
            Covas, Bresser produziu um texto que deu o que falar, ao propor uma redução expressiva
            da taxa básica de juros, para conseguir uma taxa de câmbio que estabelecesse um
            equilíbrio novo. Um câmbio nem suficientemente valorizado que estimulasse as
            importações e o consumo interno, nem muito desvalorizado que acendesse a chama da
            inflação e derrubasse as empresas. Deram a isso um número: juros reais pela metade do
            que o BC vem pagando e um câmbio em torno de R$ 3,00.  
            Agora, Bresser e Nakano vêm
            com um texto novo (Crescimento Econômico com Poupança Externa?), apresentado em reunião
            nos EUA e que levarão ao III Seminário Internacional da Universidade de São Paulo
            (Brasil: Como Crescer? Para onde Crescer?), em outubro. Bresser e Nakano ampliam o raio de
            sua crítica. Passam em revista as políticas estimuladas pelo Tesouro americano e pelo
            FMI nos anos 90, de amplo endividamento externo. Políticas que levaram a um ciclo de
            crises, desde a do México, em 1995, e a invariáveis pacotes de salvamento, como o do
            Brasil em 1998. A crítica de tais políticas acabou por produzir, no Congresso americano,
            um relatório famoso, escrito pelo economista Allan Meltzer, condenando o risco moral
            (moral hazard) - a certeza, para os investidores e bancos, de que poderiam assumir todos
            os riscos que no final seriam salvos pelos pacotes do FMI. "Nossa crítica é que o
            FMI foi frouxo conosco e que aceitamos tudo sem nenhuma crítica", diz Bresser.
            Acompanhe a entrevista:  
            Estado - Como o sr. viu a
            decisão do Copom nesta semana de manter a taxa básica de juro, com viés de baixa?  
            Luiz Carlos Bresser Pereira
            - Eu entendo que se há um viés de baixa já é um avanço. Eu imaginava que a
            mudança na política econômica poderia esperar o ano que vem. Mas veio não só uma
            crise de balanço de pagamentos antes como estamos entrando numa recessão. A soma das
            duas coisas é muito perigosa.  
            Estado - O sr. defende que
            se eleve o superávit primário e o juro caia em seis meses.  
            Bresser - Acho que esse
            governo não pode se comprometer com uma queda expressiva da taxa de juros em seis meses,
            mas ele pode começar a baixá-la.  
            Estado - Então o Copom
            errou ao não baixar o juro?  
            Bresser - Prefiro ver o
            problema num prazo mais longo. Tenho sido muito crítico dessa equipe econômica. Acho que
            ela errou entre 1995 e 1998, quando manteve o câmbio sobrevalorizado, colocando como
            problema fundamental da economia brasileira a inflação, quando não era, pois já a
            tínhamos estabilizado no começo de 95 com o Plano Real. O equilíbrio do balanço de
            pagamentos era e é o nosso problema. O governo voltou a errar em 2001, quando decidiu
            aumentar a taxa de juros e gastar cerca de US$ 28 bilhões, transformando dívida em
            títulos indexados ao dólar para segurar o câmbio. Foram dois erros graves, porque
            dificultaram alcançarmos a estabilidade macroeconômica. Ela só virá quando tivermos
            preços estabilizados, como temos, e também uma taxa de câmbio de equilíbrio que nos
            permita crescer sem perigo de explosão interna.  
            Estado - Como esta é uma
            taxa de câmbio flutuante, ela só vai entrar em equilíbrio quando houver equilíbrio no
            resto da economia. Não é assim?  
            Bresser - A taxa de
            câmbio entra em equilíbrio na medida em que se tenha também uma taxa de juros
            razoável. Mostramos naquele trabalho do começo do ano que a taxa de juro que o Banco
            Central paga é uma taxa substancialmente maior do que a classificação de risco do
            Brasil. Mas esse debate já aconteceu no começo do ano. Quando digo que o governo fez bem
            em simplesmente manter a taxa com viés de baixa é porque, deixa eu elogiar agora, ele
            fez bem em resistir ao FMI, que queria, nesse acordo, que o Brasil elevasse a taxa.  
            Estado - Mas isso não
            ficou claro na negociação do acordo.  
            Bresser - Foi o que
            várias pessoas bem informadas me disseram. O que diz a cartilha do FMI? Quando se tem uma
            crise de balanço de pagamentos, deve-se aumentar a taxa de juros. O que causa uma crise
            de balanço de pagamentos? É um excesso de demanda, uma economia superaquecida, que vem,
            portanto, importando muito e exportando pouco. Diante de um déficit em conta corrente,
            eleva-se os juros para desaquecer a economia.  
            Estado - Estamos muito
            longe disso.  
            Bresser - Estamos
            absolutamente longe disso. Estamos fora da cartilha. Essa atual crise de confiança, essa
            crise de balanço de pagamentos, decorre do fato de que o Brasil tem uma dívida interna
            muito grande, uma dívida externa muito grande, mantém um déficit em conta corrente e um
            déficit público muito altos. Esses fundamentos macroeconômicos não estão bons e,
            embora tenham melhorado nos últimos três anos, levaram à atual crise. A perspectiva
            eleitoral foi apenas um gatilho. Diante disso, não só não podemos aumentar a taxa de
            juros como precisamos baixá-la, porque a economia está em recessão. Quando há uma
            crise interna somada à externa, uma alimenta a outra e nós podemos ter uma coisa
            gravíssima.  
            Estado - Por ocasião da
            crise da crise Argentina, o mercado forçou uma alta do câmbio, indicando que os
            financiamentos para o Brasil seriam mais difíceis. Agora, em condições mais severas,
            inclusive internacionais, não ocorre o mesmo?  
            Bresser - Estamos há
            alguns meses com a rolagem da dívida de longo prazo e com a própria dívida de curto
            prazo suspensas. Precisamos recuperar esse crédito. O governo fez o que tinha de fazer,
            que foi o acordo com o FMI. Agora, é preciso, urgentemente, também defender a economia
            interna, baixando a taxa de juros e estabelecendo mecanismos de apoio para empresas
            internas que tiverem dificuldades, seja porque elas têm de rolar suas dívidas em
            dólares e não têm condições, seja porque têm problemas de falta de demanda.  
            Estado - Mas o País tem
            dinheiro para isso?  
            Bresser - Tem, e o que
            precisamos é decisão de cuidar das nossas empresas. Isso é o que estou propondo. Nossa
            situação hoje, por causa do câmbio flutuante, é muito melhor do que a da Argentina e
            melhor do que a de 1998, mas voltamos a reproduzir condições da Argentina. Crise cambial
            e, em seguida, recessão. Uma coisa dessas é uma bola de neve, que leva a economia
            inteira no final.  
            Estado - Para enfrentar
            essa crise o sr. defende aumento do superávit primário mais queda da taxa de juro?  
            Bresser - É
            fundamental que aprofundemos o ajuste fiscal. Os 3,75% foram bons para fazer esse acordo
            com o FMI, mas eu estaria me comprometendo, como governo, a conseguir um superávit maior,
            de 4%, por exemplo. Para isso, é preciso cortar despesa.  
            Estado - Qual a
            possibilidade de se fazer isso?  
            Bresser - Eu acho que
            as possibilidades nesse governo, antes das eleições, são pequenas. Mas mesmo nele,
            depois das eleições, dá para fazer. O próximo governo vai herdar essa crise, porque eu
            duvido que em janeiro de 2003 tenhamos nossa situação de crédito internacional
            regularizada. Para retomar o desenvolvimento, é preciso conseguir a estabilidade
            macroeconômica.  
            Estado - E a taxa de juros?
             
            Bresser - Precisamos de
            uma taxa que seja compatível com nosso risco, não acima. A taxa pode cair em seis meses
            no próximo governo, mas pode começar agora. Precisávamos que o câmbio deslizasse para
            em torno de R$ 3,00 e ele está no nível agora. Precisamos deixar que fique nesse nível,
            sem que suba mais.  
            Estado - Mas o câmbio a R$
            3 é a própria crise e para o sr. parece que não é um bicho de sete cabeças.  
            Bresser - O dólar a R$
            3 não é mesmo. Quando o câmbio sobe, sempre há um pouco de inflação. Mas essa
            inflação, não havendo excesso de demanda nem indexação, é temporária e acaba em
            seguida, numa economia relativamente aberta como a nossa. O fundamental é que tenhamos um
            câmbio não relativamente valorizada, mas relativamente desvalorizado. Todos os países
            que no século XX cresceram, primeiro Japão, Alemanha e Itália, depois a Coréia e a
            China, cresceram com câmbio altamente desvalorizado.  
            Estado - Analistas
            argumentam que se o BC tivesse baixado o juro levaria a mais desvalorização. O sr. está
            fazendo o raciocínio contrário, por quê?  
            Bresser - Por que uma
            baixa da taxa de juros provocaria elevação do câmbio? Aquecendo a demanda, com mais
            importação de bens? A economia está tão desaquecida que isso não acontece. Baixando a
            taxa de juros os credores parariam de investir aqui? Também isso não está,
            absolutamente, comovendo os credores. Eles acham que o Brasil pode ir a default e querem
            segurança.  
            Estado - O governo, no
            primeiro mandato, estabilizou a economia com o uso da âncora cambial, depois da
            desvalorização, em 1999, veio a âncora das metas de inflação...  
            Bresser - É a
            mesmíssima coisa. Quando o câmbio subiu, em 2001, a agenda fundamental do governo
            continuava sendo a estabilidade de preços, mesmo às custas da estabilidade das contas
            externas. Portanto, não deixou que o câmbio subisse para R$ 2,80.  
            Estado - Mas o câmbio não
            é flutuante?  
            Bresser - O câmbio
            não é flutuante, o câmbio é sujo. Nesse câmbio flutuante, se eu vendo US$ 28 bilhões
            (em títulos do governo indexados em dólar) e ponho a taxa de juros nas alturas, vê-se
            que a taxa de câmbio resultante não é uma taxa de equilíbrio. Isso é uma violência
            contra o mercado. O mercado é uma coisa que a gente tem que tentar controlar, mas com
            muito cuidado. O mercado não são os especuladores, o mercado são as taxas de
            equilíbrio, são os fundamentos macroeconômicos.  
            Estado - Como é que se vai
            fazer a mudança de modelo? Os financiadores vão aceitar a redução do juro proposta?
             
            Bresser - Mas são os
            nossos financiadores que estão nos forçando a isso agora. Por que erramos a nossa agenda
            em 1995, quando começou o novo governo, com a gestão Pedro Malan? Erramos porque ouvimos
            uma história que nos contavam lá no Primeiro Mundo, abençoada pelo FMI e pelo Banco
            Mundial, e que começava assim: "entendemos que vocês não têm mais recursos para
            financiar o seu desenvolvimento, mas não se preocupem, façam o ajuste fiscal (aliás
            muito necessário), façam as reformas (aliás quase todas muito necessárias), que nós
            financiaremos o seu desenvolvimento com a nossa poupança externa". Disseram, para um
            país altamente endividado, que a solução para ele era endividar-se ainda mais.
            Poupança externa é sinônimo de déficit em conta corrente. Aceitamos isso sem crítica.
            Agora temos que mudar isso.  
            Estado - E o que é
            fundamental para mudar?  
            Bresser - O fundamental
            é tomarmos consciência de que, sem uma taxa de câmbio que nos leve a próximo de zerar
            o déficit em conta corrente e voltar a ter grandes superávits comerciais para fazer
            frente ao enorme serviço da dívida, não sairemos desse buraco. Isso só é possível se
            fizermos um ajuste fiscal também, porque se não o fizermos os nossos credores nos deixam
            falando sozinhos. Se fizermos o ajuste, eles voltam a nos financiar.  
            Estado - Como é que se faz
            esse ajuste fiscal?  
            Bresser - Já ajudei a
            fazer alguns e ajuste fiscal é um inferno. É uma coisa no dia a dia, precisa ter uma
            determinação infernal. Sempre se pode ter o ajuste pelo lado da receita, mas isso já
            foi feito muito. Agora, vai se fazer, principalmente, pelo lado da despesa. O que eu quero
            dizer é que, quando se quer fazer o ajuste, o presidente senta-se ao lado do ministro da
            Fazenda e do secretário do Tesouro e diz: "Como é que a gente fecha esse
            caixa?" E fecha-se o caixa. Não tem outro jeito. Na crise, é preciso tomar medidas
            excepcionais.  
            Estado - Resolvida a crise
            do balanço de pagamentos, o próximo estágio de desenvolvimento ainda seria feito com
            poupança externa?  
            Bresser - A idéia de
            crescimento com poupança externa é ridícula, é uma loucura rematada. Por definição,
            quando você tem a moeda valorizada e salários valorizados em dólar, você consome mais.
             
            Estado - Mas por que
            países como China e Coréia vão atrás de poupança externa?  
            Bresser - Mas não
            vão, em hipótese alguma. A palavra poupança externa é uma palavra marota e há muitas
            palavras em economia que são marotas. Poupança externa, por definição, é déficit em
            conta corrente. Muita gente pensa que poupança externa é investimento direto estrangeiro
            (IDE). Eu sou 100% a favor desse investimento. Tomara que, em vez de US$ 20 bilhões,
            tivéssemos US$ 40 bilhões de IDE. Só que, com isso, eu não iria financiar déficit em
            conta corrente; pagaria dívidas, pelo menos uma parte. Nem a China nem a Índia aceitaram
            essa política de desenvolvimento com endividamento. Crescimento com endividamento era uma
            coisa muito razoável nos anos 70, até 1977, 1978, porque tínhamos um baixo nível de
            endividamento e grandes projetos de investimento. Nos anos 90, já tínhamos um alto
            nível de endividamento e nenhum projeto de investimento. Tivemos foi um grande projeto de
            consumo.  
            Estado - Pelo que o sr.
            está dizendo, temos grande responsabilidade nessa história?  
            Bresser - Claro que
            temos. As elites brasileiras têm, não é só o governo. As elites brasileiras compraram
            essa história.  
            Estado - A história do
            risco moral é verdadeira? Não é uma coisa de economista de Partido Republicano
            americano?  
            Bresser - Absolutamente
            verdadeira. Fizemos um paper, Nakano e eu (Crescimento Econômico com Poupança Externa?),
            que é uma crítica ao Tesouro americano, à política que ele, com o FMI e o Banco
            Mundial adotaram em relação aos países altamente endividados nos anos 90. É também
            uma crítica às elites locais, que aceitaram essa política sem reservas. Nossa crítica
            ao FMI não é a crítica normal, que o FMI é muito duro. É o contrário. O que o FMI
            usou conosco foi um soft budget constraint, uma política frouxa em relação ao déficit
            público, à parte fiscal. O FMI foi frouxo conosco em relação à conta corrente e nos
            levou a nos endividar irresponsavelmente. Criticamos o FMI não por ser duro, mas por ser
            frouxo, por ter feito uma política populista.  
            Estado - O sr. está
            otimista quanto à volta do crescimento?
             
            Bresser - Se tivermos a
            coragem de tomar as medidas necessárias, voltaremos a crescer. Para sair desse buraco,
            vamos ter que reduzir o consumo. Essa redução vai ser pública, com ajuste fiscal, e
            privada, pelo câmbio.  
            Estado - Os primeiros dois
            anos do próximo governo vão ser de sacrifícios?  
            Bresser - Vão, sem
            dúvida. Os candidatos estão contando que vão financiar suas despesas sociais com
            crescimento. É pouco provável que, especialmente no primeiro ano, haja qualquer
            crescimento da economia. Se houver, será um desastre.  |